O que significa ismália

Sendo este o meu primeiro texto e já que nele falarei sobre uma música que está dentro do movimento hip-hop (cultura negra) e tocarei em questões raciais, acho importante e respeitável determinar quem eu sou - um homem cis hétero branco.

Meu objetivo com o texto é fazer com que quem leia saia daqui com vontade de escutar a música do Emicida, de sentir o poema de Alphonsus de Guimaraens e de ler o mito de Ícaro. Espero também que o leitor reflita sobre os temas aqui tocados. Eu, particularmente, amo referências, lê-las e compartilhá-las, e é o que sempre tento fazer quando escrevo algo.

Ismália, a música

Capa do álbum AmarElo - Emicida

Com nome inspirado em um poema do curitibano Paulo Leminski (amar é um elo / entre o azul / e o amarelo), Emicida lançou em outubro de 2019 o álbum AmarElo, classificado pelo próprio artista como uma obra de neo-samba e produzido por Nave. Além do álbum, o artista lançou o podcast AmarElo Prisma, o documentário AmarElo - É Tudo Pra Ontem e AmarElo - Ao vivo, gravação do show de lançamento do álbum que aconteceu no Theatro Municipal de São Paulo. Tudo isso mostra o artista completo que Emicida é, já que os anos de pesquisa ao redor do álbum se desdobraram em muito conteúdo e aulas para os apreciadores da cultura. Dele, falarei sobre a música “Ismália”, a qual conta com a participação de Larissa Luz e Fernanda Montenegro (sim, a grande atriz brasileira!).

A ideia aqui é fazer uma intertextualidade entre a música do Emicida, o poema “Ismália” do poeta Alphonsus de Guimaraens e o mito “As asas de Ícaro”, no intuito de relacionar música e literatura.

De início, vamos pincelar um pouco sobre o tema da canção. Com uma introdução fortíssima na bela voz de Larissa Luz, já temos noção de que a música tocará no tema racial através dos versos “A felicidade do branco é plena / A felicidade do preto é quase”. Junto com esta temática principal, o rapper fala sobre a falsa ideia de meritocracia, violência policial, escravidão e desigualdade racial e social.

Separei alguns trechos da música para entendermos sobre ela antes de chegarmos no mito de Ícaro e no poema Ismália.

Ela quis ser chamada de morena

Que isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena

Aqui o rapper fala sobre o branqueamento racial, que adotou o termo “morena”, visando ou no intuito de enfraquecer a população negra no Brasil, já que “morena” significa uma mulher branca de cabelo preto.

Em outro trecho, o rapper toca no tema da meritocracia, criticando essa ideia:

Paisinho de bosta, a mídia gosta

Deixa falha e quer medalha de quem corre com fratura exposta

Eu poderia falar muito sobre este tema, mas não quero desviar do assunto mais do que poderia falando sobre música, poesia e mitologia. Contudo, com uma reflexão simples, nós realmente vemos por aí diversas reportagens romantizando o trabalho em excesso ou por extrema necessidade, como idosos ou crianças fazendo entregas de aplicativos com bicicleta, por exemplo.

Outro tema que o rapper traz para a sua música é o da violência policial contra a população negra. Primeiro ele cita o assassinato de Evaldo Rosa, o qual estava indo a um chá-de-bebê com sua família, e Luciano Macedo, catador de recicláveis que tentou socorrer a família e morreu dias depois não resistindo aos disparos por militares - 257 ao total, 80 deles contra o veículo.

80 tiros te lembram que existe pele alva e pelo alvo

Quem disparou usava farda (mais uma vez)

Quem te acusou nem lá num tava (bando de espírito de porco)

Porque um corpo preto morto

É tipo os hit das parada

Todo mundo vê, mas essa porra não diz nada

Em outro trecho, o rapper faz um jogo de palavras em progressão numérica citando a morte de Wilton Esteves Domingos Júnior, de 20 anos, Wesley Castro Rodrigues, de 25 anos, e seus amigos Cleiton Corrêa de Souza, de 18 anos, Carlos Eduardo da Silva de Souza, de 16 anos, e Roberto de Souza Penha, de 16 anos. Os cinco amigos estavam em um carro, voltando de uma lanchonete onde foram comemorar o primeiro salário de um deles, quando foram alvos de disparos. O carro foi alvejado por 111 tiros. O argumento da polícia? Tratava-se de bandidos...

Um primeiro salário, duas fardas policiais

Três no banco traseiro da cor dos quatro Racionais

Cinco vidas interrompidas, moleques de ouro e bronze

Tiros e tiros e tiros, o menino levou 111

Por fim, separei o seguinte trecho:

Primeiro sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles

Nega o Deus deles, ofende, separa eles

Se algum sonho ousa correr, ‘cê para ele

E manda eles debater com a bala que vara eles

Emicida faz um paralelo entre o período escravocrata e a realidade atual no país, portanto a interpretação pode ocorrer de duas formas. Primeiro acerca do processo de escravização, onde povos africanos foram sequestrados e, no nosso caso, trazidos para o Brasil. Aqui, esses povos tiveram toda sua cultura e crenças negadas, ação apoiada pela Igreja Católica que insinuava que os negros “não tinham alma”. Além disso, africanos de um mesmo povo foram separados, parte estratégica do escravizador para que revoltas fossem evitadas, já que assim eles estariam em contato com pessoas de diferentes línguas, costumes e cultura em geral.

Para a outra interpretação, colocamos esse mesmo trecho nos dias atuais, assim temos o sequestro, o roubo e a mentira representadas pela polícia, a qual em diversas ações brutais sequestra, ofende, tortura e forja crimes em cima da população periférica, negra e pobre. Além disso, o trecho “nega o Deus dele” em uma interpretação atual indica o racismo religioso, já que religiões de matriz africana (como a Umbanda e o Candomblé) sofrem ataques aos seus terreiros frequentemente.

As asas de Ícaro

A queda de Ícaro (1637), pintura de Jacob Peter Gowy

A seguir fiz um resumo do mito “As asas de Ícaro” para depois compreendermos a referência na música.

Dédalo, grande inventor, foi quem, a mando do rei Minos, construiu o labirinto no qual Minotauro estava. Teseu derrotou o Minotauro, mas Dédalo foi tido como traidor pelo rei, acusado de fornecer à princesa Ariadne o fio que ela entregou a Teseu, usado para fugir do labirinto após matar o Minotauro. Com isso, o rei Minos prendeu Dédalo e seu filho Ícaro no labirinto, para provarem se era mesmo possível sair no labirinto.

Dédalo, um ser com enorme criatividade, construiu asas utilizando madeira, penas de aves e cera. Antes de saírem, Dédalo avisou seu filho para não se aproximar muito do sol, pois o calor poderia derreter a cera que prende as asas. Encantado com o voo e sua liberdade, Ícaro voava cada vez mais alto, não lembrando do aviso do pai. Com isso, a cera das asas derreteram, fazendo com que Ícaro caísse no mar. Dédalo, longe do voo do filho nada pode fazer para ajudá-lo. Após longa procura, encontrou o corpo do filho jogado às margens de uma das praias. Dédalo o enterrou no mesmo local, que passou a se chamar Icária, em homenagem a Ícaro.

Ismália, o poema

Alphonsus de Guimaraens

Ismália é um poema de Alphonsus de Guimaraens (Ouro Preto, 24 de julho de 1870 - Mariana, 15 de julho de 1921), poeta que carrega uma poesia marcadamente mística e envolvida com a religiosidade católica. Nela, ele explora o sentido da morte, o amor impossível, a solidão e a inadaptação ao mundo.

Alphonsus de Guimaraens fez parte do movimento Simbolista, movimento artístico e literário que surgiu na França no século XIX. Esse movimento traz características como elementos sombrios, figuras de linguagem relativas à sonoridade do texto e representações por meio de símbolos, como a lua, o mar, o céu e a noite. Além disso, o Simbolismo se opôs ao Realismo, ao Naturalismo e ao Parnasianismo, inserindo uma proposta subjetiva, intuitiva, irracional e uma busca pelo inconsciente da mente humana.

Como aqui estamos em busca da intertextualidade entre a música e o poema, e eu ainda nem o apresentei, a ideia não é fazer uma análise, apenas tentarei colocá-lo no caminho da canção de Emicida. Superficialmente, pode-se dizer que Ismália adentra em um conflito entre alma e vida terrena, numa dor de se viver num mundo sem sentido e a própria busca pela significação de sua existência. Os símbolos utilizados pelo poeta (a torre, o céu, o mar, a lua) durante todo o poema constroem um cenário de tensão até chegar ao ponto alto do texto - o suicídio de Ismália.

No fim das contas é tudo Ismália

Aqui é onde os caminhos se cruzam - a música, o mito e o poema.

Em sua música, Emicida resgata o mito de Ícaro, colocando-o na temática da canção - o sonho e a liberdade agora estão no contexto da população negra em um país extremamente racista, como vimos em trechos anteriores. No pré-refrão o rapper canta:

Olhei no espelho

Ícaro me encarou

‘Cuidado, não voa tão perto do sol

Eles num ‘guenta te ver livre, imagina te ver rei’

O abutre quer te ver de algema pra dizer: 'Ó, num falei?'

Através do mito, o eu-lírico da canção se vê olhando no espelho, olhar este de uma pessoa negra em uma sociedade racista, e recebendo o conselho de Ícaro, o mesmo conselho que recebera de seu pai. Com isso, Emicida fala sobre como a ascensão da população negra incomoda a sociedade e também como ela é condicionada a “voar baixo”, já que a sociedade mal suporta a ideia de ver um negro sendo liberto da escravidão (já que isso aconteceu, entre outros, por motivos econômicos, sendo o Brasil um dos últimos a abolirem a escravidão), imagina então ver ele ascendendo social e economicamente dentro de um sistema capitalista.

Emicida reserva o poema de Alphonsus de Guimaraens para o final da música, um interlúdio por conta da maravilhosa Fernanda Montenegro que o recita lindamente:

Quando Ismália enlouqueceu,

Pôs-se na torre a sonhar…

Viu uma lua no céu,

Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,

Banhou-se toda em luar…

Queria subir ao céu,

Queria descer ao mar…

E, no desvario seu,

Na torre pôs-se a cantar…

Estava perto do céu,

Estava longe do mar…

E como um anjo pendeu

As asas para voar…

Queria a lua do céu,

Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deu

Ruflaram de par em par…

Sua alma subiu ao céu,

Seu corpo desceu ao mar…

Aproximando Ismália de Ícaro, temos os dois personagens perdendo suas vidas no mar, ambos buscando o céu, consciente ou inconscientemente. Assim como Ícaro, Ismália tem sua morte representado pelas asas, símbolo que representa o voo - um voo mirando o céu, mas que terminou no mar. Como citei anteriormente, a religião influenciou o Simbolismo e a poesia de Alphonsus de Guimaraens, contudo, no catolicismo, muitos creem que quem comete suicídio não alcança o reino dos céus… Enfim, isso fica para interpretações e análises, talvez o acontecimento seja porque Ismália enlouqueceu, ou sonhou, não sei...

Além desta ligação entre Ismália e Ícaro, podemos aproximá-la da temática da música. Todos os problemas já citados em uma sociedade racista poderia atingir uma Ismália, que, no século XXI, poderia ser representada por uma mulher negra. Ou seja, ela teria sua saúde mental atingida por causa dos problemas dessa sociedade elitista e racista que não deixa ela e seus iguais sonharem e, até mesmo, viverem. Ícaro aconselha: “Não voa tão perto do Sol”. Ismália, como canta o refrão da música, “Quis tocar o céu, mas terminou no chão / Ter pele escura é ser Ismália”.

No fim das contas é tudo Ismália…

Referências
  • Emicida. Ismália. In: Emicida; LUZ, Larissa; MONTENEGRO, Fernanda. AmarElo. São Paulo: Laboratório Fantasma, 2019. Álbum. Faixa 8.

  • FRANCHINI, A. S.; SEGANFREDO, Carmen. As 100 melhores histórias da mitologia: Deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-romana. 9a edição. Porto Alegre: L&PM, 2007.

  • FONTES, Elisa. 80 tiros e o fim de um sonho: ‘Tem sido muito difícil ter que seguir sem ele’, diz viúva de músico fuzilado pelo Exército. Ponte Jornalismo, 10 de julho de 2021. Disponível em: <//ponte.org/80-tiros-e-o-fim-de-um-sonho-tem-sido-muito-dificil-ter-que-seguir-sem-ele-diz-viuva-de-musico-fuzilado-pelo-exercito/>. Acesso em: 17 de setembro de 2021.

  • GUIMARAENS, A. Melhores poemas de Alphonsus de Guimaraens / seleção de Alphonsus de Guimaraens Filho. 4 ed. São Paulo: Global, 2001.

  • MARTÍN, María. O eco dos 111 tiros de Costa Barros. El País, Rio de Janeiro, 25 de dezembro de 2016. Disponível em: <//brasil.elpais.com/brasil/2016/11/28/politica/1480370686_545342.html>. Acesso em: 17 de setembro de 2021.


Postingan terbaru

LIHAT SEMUA